SOBRE O FILME

Durante o auge da seca, na pequena cidade de Milagres [Bahia], os pacíficos moradores que subsistem de suas plantações não têm mais o que comer ou do que viver. Uma pequena guarnição militar, armada de fuzis, é levada para "manter a ordem" no local, ou melhor, proteger a venda de Seu Vicente, único que ainda tem provisões na cidade. As vidas dos militares, dos viajantes de passagem e dos pacatos cidadãos locais se cruzam, com diferentes resultados. Enquanto alguns se envolvem com as jovens da cidade, outros se divertem disparando seus fuzis a esmo – até matarem um morador acidentalmente. Ao mesmo tempo, o ex-militar e atual caminhoneiro Gaúcho indigna-se com a passividade dos locais perante a injustiça da fome, mas qualquer atitude pode ter consequências fatais. Ao longo do belo e árido filme, dirigido pelo moçambicano Ruy Guerra, muitas questões surgem – sobre paz e ação, política e moral, justiça e sobrevivência. A trilha é construída majoritariamente com cantos populares, que se somam ao pungente e curto tema principal de Moacir Santos. Entre tédio, procissões e mortes de tiro ou de fome, vemos um belo filme, fatalista e político, de poesia árida.

CRÉDITOS REDUZIDOS

Produção: Copacabana Filmes
Roteiro: Ruy Guerra
Direção: Ruy Guerra

Coordenação musical e tema original: Moacir Santos [benditos, sentinelas e canções nordestinas]
Técnico de som: Aluizio Vianna
Sonoplastia: Geraldo José, Walter Goulart e Jair Pereira


MÚSICA IDENTIFICADA NA TRILHA

"Bluishmen" - Lançada no disco The Maestro [1972]


DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA TRILHA

Dentre todos os filmes em que Moacir Santos trabalhou nos anos 1960, a trilha musical de Os Fuzis é a que mais se enquadra dentro dos preceitos do Cinema Novo, movimento de grande importância na época. Isso se dá principalmente pelo fato de haver pouca música ao longo do filme e pela retratação de realidade que as gravações diegéticas trazem.

A única inserção musical efetivamente composta por Santos para o filme é uma melodia tocada apenas por um violoncelo solo com uma interpretação bastante solta e livre. Esse "tema principal" tem uma função muito importante na articulação dramático-narrativa do filme, abrindo e fechando ciclos de acontecimentos, sendo apresentado apenas três vezes ao longo das quase duas horas de duração do longa-metragem. O fato do trecho ser o único extra-diegético de toda a trilha também ressalta ainda mais sua representatividade.

A construção da melodia alterna a rítmica ternária de semínimas com a binária de colcheias, passando por notas longas que ora servem de repouso e ora impulsionam o desenvolvimento do perfil melódico. É digno de nota que essa melodia composta por Santos foi usada na introdução da música "Bluishmen", que seria lançada em 1972 em The Maestro. No disco, a linha do violoncelo é transferida para uma trompa e diversas outras camadas são adicionadas, formando um trecho bastante denso e carregado, diametralmente oposto do uso na trilha.

Outra inserção musical pontual interessante dentro da trilha é a da percussão. Na primeira aparição vemos uma senhora falando de como ficou cega e tocando uma espécie de reco-reco feito de uma mola em uma pequena caixa de metal, "raspada" por um objeto que aparenta ser uma chave de fenda. No início ela está somente tocando seu instrumento improvisado de maneira desestruturada, mas em um determinado momento ela começa um padrão rítmico regular, que logo é ouvido de forma extra-diegética em sequências posteriores: a estrutura rítmica é sobreposta às imagens dos soldados caminhando pela cidade e é possível perceber esse som como uma alusão à marcha militar ritmada. A figura da mulher cega tocando seu instrumento improvisado remete aos músicos/cantadores/repentistas do Nordeste, tradicionalmente retratados nos filmes da época como músicos com alguma deficiência tocando nas ruas por alguns trocados.

As cantorias diegéticas também são importante parte da música do filme, retratadas nos créditos iniciais como [benditos, sentinelas e canções nordestinas]. Em geral elas apresentam uma forte carga religiosa e são justificadas tanto pelo desenrolar da história quanto pela representação social.

Uma das características mais fáceis de perceber ao assistir o filme é que há grandes períodos de silêncio musical e mesmo os diálogos não são abundantes. Isso acaba se tornando uma marca estética importante e o ponto de aproximação mais concreto de outras produções de referência do cinema brasileiro na década de 1960. Como por exemplo Vidas Secas, filme de Nelson Pereira dos Santos adaptado da obra homônima de Graciliano Ramos.

Desde o advento do cinema sonoro, as técnicas e padrões estéticos mudaram diversas vezes, caminhando junto com as condições de cada produtora em cada país. No Brasil dos anos 1940 e 1950, grandes companhias como a Atlântida e a Vera Cruz dominavam o mercado e as trilhas eram bastante densas. Já a partir dos anos 1960, quando a lógica de produção audiovisual sofreu uma grande reviravolta, o uso abundante de inserções musicais foi caindo, mostrando um amadurecimento poético dos autores, aliado às condições financeiras vigentes. Contudo, essa mudança não foi um fenômeno exclusivo do nosso país e pode ser percebida em um nível global.

Como dito anteriormente, em Os Fuzis, o silêncio é intercalado com poucas inserções musicais, que ganham um frescor especial a cada aparição e isso valoriza o material musical, que passa a ser de mais fácil assimilação, enfatizando a função narrativa da trilha.

Nos créditos iniciais de Os Fuzis, aparece a seguinte frase: "Coordenação musical e tema – Moacir Santos [benditos, sentinelas e canções nordestinas]". Com isso, entende-se que Santos teve um papel fundamental em todas as etapas da produção da trilha e não apenas na composição do "tema principal", como se poderia pensar em um primeiro momento. Para ilustrar essa ideia, segue abaixo a reprodução de um roteiro manuscrito com informações sobre a produção em um caderno pessoal com anotações e apontamentos de Moacir:

Reprodução de página de um caderno de apontamentos, presente no acervo pessoal da família Santos.

Essa trilha foi estruturada por Santos com poucas inserções musicais e baixa atividade na faixa sonora de maneira geral, mas é notável que esse procedimento foi certamente uma escolha estética apropriada, que dialoga tanto com a produção quanto com o período cultural e político em que ela se insere.

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Os Fuzis  PERÍODO BRASILEIRO
Lançado comercialmente no Brasil em janeiro de 1965, dirigido por Ruy Guerra